Wednesday, August 14, 2013

Um grande ladrão!

Era bom em tudo quanto fosse jogo. Ainda fedelho, no jogo das escondidas – tempos de nada que fazer que aproveitava para assaltar os quintais dos vizinhos. Já matulão, no jogo de mãos com que maravilhava garinas, justificando o nome de O Chouriço ou O Sovaqueiro por que ficou conhecido durante uns tempos. Logo aí se viciou no jogo do bicho e outros jogos até se fazer homem de barba rija, uma vida de amantes e pequena fortuna. Com o dom da palavra e tanta unha na palma progrediu e fez carreira na Bolsa, aí se reformando da velha vida. E é vê-lo agora pacato cidadão, fato e gravata e sapato a luzir, a passear mulher e filhos e o cão...

Foi vida em grande, em crescendo, apenas aqui e ali um deslize: vida cheia de aventuras de um grande ladrão, porém homem cotadíssimo!


(1. Dicionário: 

Fedelho: criança que ainda fede a cueiros; rapaz muito novo; criança.
Jogo das escondidas: brincadeira de crianças, em que todas menos uma se escondem para serem procuradas por esta.
Matulão e matulaz: vadio, matula; rapaz encorpado, forte; rapagão.
Jogo de mãos: sortes de prestidigitação.
Garina: chavala; rapariga; mulher jovem; namorada. «(…) Aí sim, dava mais trabalho mas tirava-se proveito. Aí os vampiros de Almirante Reis, de Chelas ou do Intendente podiam encontrar garinas a preceito: costureirinhas de boa-fé, adolescentes despassaradas, garotas de galderice – tudo material de bom alcance para converter aos lençóis da chamada má-vida que afinal ainda é a melhor desde que bem orientada por alguém de saber e de maneiras (…)» - José Cardoso Pires «in» A Cavalo no Diabo.
Carteirista: “Carteiro”, “choro” ou “chouriço, sovaqueiro
Jogo do bicho: espécie de lotaria clandestina.
Jogo de palavras: trocadilho; frase com ambiguidade de sentido ou que permite mais de um sentido.
Ter unha na palma (linguagem dos carteiristas): ter habilidade para “puxar” (com ch) o “cabedal” (carteira) do “porão” (bolso lateral de um casaco) com um “chino” (canivete) ou outro material cortante.
Jogo da Bolsa: transacções em fundos públicos.;

2. A propósito: «Uma viagem ao delirante mundo dos carteiristas» - Público de 2012/10/09:

«Estima-se que trabalhem em Lisboa 70 carteiristas profissionais, sendo que 20 deles são estrangeiros. Um texto que revela a linguagem usada pelos carteiristas.

A maior parte não consegue passar despercebida ao olhar dos agentes da Divisão de Segurança dos Transportes Públicos, polícias que dispensam diariamente atenção especial aos comboios suburbanos que servem a capital, à rede do metropolitano e a meia dúzia de carreiras de autocarros e eléctricos.

Foi o olho clínico de um agente de investigação criminal da PSP que, no dia 5, junto a uma paragem da carreira 28, na Avenida Infante D. Henrique permitiu a recaptura de um dos mais antigos “carteiros” da cidade.

“Carteiro”, “choro” ou “chouriço” são apenas três dos nomes dados aos carteiristas, classe de delinquentes que possui um dos mais ricos jargões. Não se sabe se o homem, de 55 anos, que a PSP prendeu no último feriado, estaria ou não a “trabalhar” ou a “praticar golfe”, que é como quem diz, na linguagem dos carteiristas, a furtar.

A verdade é que, mesmo não tendo sido notada a presença do “namorado” (um segundo carteirista que ajuda o companheiro durante os furtos), encontrava-se num dos pontos mais vigiados pela polícia. Quando lhe deram voz de prisão resignou-se. Estava evadido da cadeia desde 2010, altura em que foi condenado a cumprir seis meses de prisão em dias livres (cumpridos apenas aos fins-de-semana).

Para “chouriçar” os “carteiros” procuram as “montadas”. O mesmo quer dizer que para praticarem os melhores furtos os carteiristas tentam actuar nos grandes ajuntamentos (transportes públicos, entradas de monumentos ou edifícios muito movimentados, recintos desportivos).

Uma das zonas de Lisboa mais frequentadas pelos carteiristas é da Sé, um “fatio” (zona boa para roubar” sempre bem composta de “guiros” (turistas).

“Livros”, “chatas” ou “cabedais” são os nomes mais dados às carteiras pelos ladrões. Para se chegar às mesmas existem várias técnicas. Primeiro faz-se o “toque de guizo” – um dos “namorados” dá um encontrão na vítima tentando, despercebidamente, para localizar a carteira na respectiva peça de vestuário (no “justo”, se for um casaco, na “lima” ou “mimosa” se se tratar da camisa, nas “justas” se forem as calças).

Localizada a carteira passa-se à fase seguinte. Se estiver num sítio muito protegido a opção mais comum é a do empurrão, do aperto. A vítima é quase prensada (nos transportes) enquanto um “choro”, de “baios”, “drifes”, “bastos” ou “compridos” – nada mais nada menos que os dedos – saca a carteira de modo rápido e imperceptível. Roubada a carteira diz-se, também, ainda na linguagem usada pelos criminosos, que a mesma foi “puchada” (com ch e não com x).

Mas há técnicas mais apuradas, tal como a “sangria”. Se o “cabedal” se encontra no “porão” do “justo” (num bolso lateral de um casaco) e se o “chouriço” tiver “unha na palma”, que é como quem diz habilidade, entra em acção um “chino” (canivete) um bisturi ou até uma tesoura.

O fundo do casaco é cortado (“sangrado”) e a carteira cai direitinha nos “garfos” (nas mãos) de um dos ladrões.

Os carteiristas de Lisboa, que nas décadas de 1960 e 1970 tinha especial predilecção pelas canetas de marca que os homens usavam nos bolsos das camisas (diziam que iam às Rosa Negra – marca de uma camisa cara – quando com o auxílio de um jornal dobrado sacavam habilmente as canetas), socorrem-se muitas vezes das chamadas “muletas”.

A “muleta” não passa de um objecto que serve apenas para ajudar a consumar o furto ou dissimular o objecto furtado. Pode ser um jornal (“folhoso”) uma gabardina ou um chapéu-de-chuva.

Também há carteiristas que escondem o objecto dos furtos nos sovacos. A estes dá-se, com alguma lógica, a alcunha de “sovaqueiros”.

Não se pense, contudo, que os “carteiros” são uma espécie sedentária, que assenta arraiais na zona turística da cidade onde vive e raramente a abandona. Nada disso. A polícia tanto dá com eles nas carreiras 15 e 28 dos eléctricos de Lisboa, como dias depois os localiza nos grandes ajustamentos religiosos. E não é só em Fátima ou nas procissões de algumas cidades nortenhas que no Verão homenageiam a comunidade imigrante que os carteiristas são referenciados. É frequente vê-los noutros santuários (Lourdes, em França) e destinos religiosos (Santiago de Compostela, em Espanha) ou até no Vaticano.Por fim resta acrescentar que a “arte” de roubar carteiras não é um exclusivo dos homens. Em Fátima a polícia identifica com frequência grupos de quatro e cinco mulheres que, mais do que pela fé, são movidas pela gula de “chatas recheadas” (carteiras cheias) que muitas vezes até andam “espontadas”, que é como quem diz colocadas num bolso traseiro (“culatra”) das calças.

No primeiro semestre deste ano a PSP deteve 37 carteiristas só na cidade de Lisboa.»)

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