Thursday, September 08, 2016

Conversa de dois cães de rebanho a propósito da nova lei sobre o lobo-ibérico

(Lobo, também chamado Canis lupus signatus)

– Claro que estava no exercício das minhas funções. Claro que estava no exercício das minhas funções – uivava sem cessar o cão de protecção de rebanho. – Nunca faltei um dia da minha vida às minhas obrigações, disso posso-me gabar. Nunca faltei um dia. Tivemos azar – estava inconsolável o cão de gado, um Mastim de origens nórdicas, pelagem branca com algumas manchas meio amareladas, orelhas caídas cor de café e grande como uma ovelha.

– Uma chatice – exclamou o cão de condução de rebanho, companheiro de lides, um cão de pastor da raça Border Collie, neto de campeão inglês, pelagem preta e branca (mais preto que branco), frenético até no ladrar e um viciado no trabalho, como alguma gente que anda por aí. – É que enquanto o Torga espera pela indemnização agora deu-lhe para olhar de lado, como se tivéssemos culpa. (O Torga era o proprietário das terras e dono dos cães, um tipo rude como as pedras da montanha onde a urze, também chamada Torga, deita raízes, e daí o apelido, ou a alcunha, ao que parece por causa de um célebre escritor.) 

– E agora os ossos da nossa sopa, rosna-se por aí, em vez de serem caseiros vêm do talho – disse o cão de gado, lamentando a pouca sorte. 

– O problema é que o Torga removeu partes do corpo da Branquinha antes da chegada da vistoria. 

– Oh, diabo! – tossiu o outro. 

– E para agravar a situação – continuou o Collie – o Torga já tem uma condenação em tribunal por atirar de raspão numa cria de lobo. 

– Numa cria!? – o cachaço do Mastim parecia uma vassoura de piaçaba. – Numa cria acho mal – e teve mais um ataque de tosse. 



















Legenda: Em vez de trabalharem...

– Pois. É o que te digo, não se safa, não vai receber um tusto. Ai de nós! Ninguém nos defende. Dum lado temos as autoridades e o lobo, do outro o dono e o rebanho. Estamos em fogo cruzado! – Bateu com uma das patas no chão com tanta força que até parecia um juiz com o malho de madeira a mandar calar a assistência no tribunal. 

– Achas que vamos ser apreendidos pelas autoridades? – ganiu o nórdico. 

– Até me imagino a contar as horas como cão de companhia, algures num terceiro andar de um prédio, lado a lado com pinschers e chihuahuas, tipos de que até os gatos se riem… Uma vergonha! 

– Antes a morte que tal sorte! – uivou o cor de ovelha. – Está na hora de vestir a pele de cão selvagem. Vens?


(1. A lei: «Decreto-Lei n.º 54/2016», de 25 de Agosto» (visa a consolidação do regime de proteção e conservação do lobo–ibérico); 2. A propósito: a) «Lobo-ibérico» - Wikipedia; b) «O Lobo Ibérico», «in» Grupo Lobo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa; 3. Mais uma vez a propósito: «Cães de Rebanho 1: Diferenças entre Cães de Gado e Cães de Pastor»; Carla Cruz; Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 5001-801 Vila Real («in» O Cão – Jornal da Associação Portuguesa do Cão da Serra da Estrela, n.º 15 (2011), pp. 6-14); 

4. a) «Molosso (raça)» - Wikipedia e «Cão da Serra da Estrela», «in» Associação Portuguesa do Cão da Serra da Estrela; b) «História do BORDER COLLIE»; «in» Collie Clube de Portugal; 

5. «Torga» (final do 2.º parágrafo): a) «As Urzes», «in» asurzes.blogspot.pt (grupo de alunos, de 12º ano da Escola Secundária de Miguel Torga – Bragança)); b) «Miguel Torga» - Wikipedia; 

6. Dicionário: a) Uivar: expressar ou aliviar a frustração; b) Rosnar: dizer em voz baixa e por entre dentes, amaldiçoando; c) Tusto (provincianismo e gíria): o mesmo que testo ou tostão; d) Malho de madeira: o martelo do juiz é também chamado de malhete e constitui um dos símbolos do direito e da justiça; e) Ganir: gemer, suspirar, lamentar;

7. Nota: composição, em cima, a partir de imagens disponíveis na Web, nomeadamente nos artigos referidos em 3. e 4.b) )

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