Wednesday, September 17, 2014

O Soldador e a Procissão

(Pequena peça de teatro)

As cenas ocorrem em dois andares de garagem

Personagens:

O Que Sonha
O Soldador
A Senhora da Limpeza do Escritório
A Dactilógrafa do Escritório (também chamada de A Criada)
As Duas Tias Queimadas
O Homem

Além das cinco mulheres – e aqui se inclui a Tia Maluca (que só é referida) –, mais duas figurantes para a cena da Procissão.

Os personagens apresentam-se um a um no palco, pelos nomes (eu sou… nós somos…), e saem.

A acção, propriamente dita, é assim, em bruto:

1.º Acto – No andar de baixo

O Soldador está a soldar um arco para um sifão. O ferro está incandescente, em brasa. Ao lado dele, O Que Sonha elogia-o: – Quem sabe, sabe!

Um e outro observam o resultado da operação:

– Ficou mais largo – diz O Que Sonha.

– Não interessa… – respondeu O Soldador.

– O que interessa é o que vai por cima – diz O Que Sonha completando-lhe o raciocínio. Aparte para o público: – É a sanita.

2.º Acto – O Que Sonha e o Soldador estão agora no andar de cima.

Por baixo deles, por uma falha na laje, pode ver-se o arco para o sifão ainda incandescente. Observam. A coisa parece estar a correr bem mas O Soldador bate com o pé no chão e o arco em baixo desprende-se da soldadura. O Soldador está muito desiludido. Saem do lugar e pelo caminho encontram um arco mais pequeno.

– Isto é que é um arco! – diz O Que Sonha. – Um arco moderno, o outro parecia da primeira grande guerra, melhor, da segunda grande guerra… – explicou-se melhor: – os da segunda grande guerra são mais antigos porque são nazis.

3.º Acto – Um facto novo se dá:

Passa uma procissão (o Soldador desaparece de cena). É uma procissão de mulheres com vestidos longos. A sombria Senhora da Limpeza do Escritório vem atrás; no meio vem A Dactilógrafa do Escritório (a única de vestidos floridos); as restantes mulheres não se percebe quem são, vê-se que são esguias e que têm panos na cabeça e que vêm com malas na mão.

– Suponho que é a criada – diz O Que Sonha para A Dactilógrafa do Escritório.

– Sou. Sou – diz A Criada. Aparte para o público: – Na verdade sou A Dactilógrafa do Escritório.

– A criada é mais bonita que as patroas – solta para o ar, em voz alta, O Que Sonha.

– É o neto – diz A Criada dirigindo-se a O Que Sonha. Com a palma da mão cobre a boca do lado do interlocutor e segreda para o público: – Sou eu a adivinhar…

– Há aí uma tia maluca – responde O Que Sonha.

– Há. Há – confirma A Criada. A Criada, que na verdade é A Dactilógrafa do Escritório, não pára, segue na procissão. Inclina-se ora para a esquerda ora para a direita e lança beijinhos para o ar como se ali houvesse janelas e gente às janelas para os receber. (destaca-se também porque é a única florida! – nunca é demais dizê-lo.)

– Essas aí são As Minhas Tias Queimadas – diz O Que Sonha. As senhoras estão de frente, lado a lado, e vê-se que têm as faces queimadas. – Foram queimadas no tempo da Inquisição – esclareceu a rir O Que Sonha.

– No tempo da Inquisição – confirma A Criada também a rir (que é, já sabemos, A Dactilógrafa do Escritório).


















Falso 4.º acto (e último) – Os actores param.

Pára a procissão. As caras de riso ficam suspensas, como estão, como numa fotografia. A luz amortece no palco. Entretanto um foco de luz surge e segue O Homem que entra em cena e se põe em primeiro plano. O Homem dirige-se à assistência:

– Bem. E agora? Resta dizer que são sete e onze da manhã e que O Que Sonha foi novamente dormir. Não se sabe se conseguiu retomar a meada da história. Mas nós sabemos, por experiência própria, que isso raramente acontece e, se acontece, não tem os resultados que esperamos. Não é assim? – interpela a plateia.

(ligeira pausa)

E alto e incisivo: – Espero que tenham gostado!

(cai o pano)

(convém que haja palmas para que os actores subam de novo ao palco, a agradecer, satisfeitos.)


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