Sunday, February 23, 2020

Até amanhã, meus senhores, se Eu quiser.

O Lacerda tinha uma teoria curiosa: um homem devia ter um tempo de vida estipulado e enquanto vivesse gozar de boa saúde. Findo o prazo morria e não havia cá aquela coisa de ir p'ra outra vida.

O Lacerda morreu de morte súbita aos 78 anos. Um dia regressou. Logo os amigos quiseram saber como era a tal outra vida. Que era uma festa permanente, respondeu. Mais curiosos ainda, perguntaram-lhe como era Deus. Um tipo porreiro, da borga, mas só soube que era Ele quando um dia, depois de uma grande jantarada, Ele se levantou e disse: Até amanhã, meus senhores, se Eu quiser.

O Lacerda andava chateado como um peru. Primeiro, porque nunca desejara ter uma outra vida; segundo, porque conhecendo a que tivera do lado de cá era um desperdício de tempo andar a repetir tudo de novo. Um dia atravessou-se à frente de um autocarro e morreu segunda vez. Os amigos têm uma leve suspeita de que terá ido parar ao Inferno, onde quem preside é o Diabo.

O riso do Diabo, 1975?, desenho a caneta de tinta da china.














A verdade é que o Lacerda até hoje não regressou e já faz bastante tempo. De modo que os amigos estão sem saber como são por lá os salamaleques e se aquilo é assim tão mau como dizem.


(1. A propósito: o «Diabo» neste «blog»; 2. Dicionário: salamaleque: a) do árabe, salam'alaik, a paz esteja convosco (saudação entre os muçulmanos); b) equivalente a rapapé: cumprimento afectado ou exagerado; grande reverência ou mesura.)

Wednesday, February 19, 2020

Se Homarus não tem sangue azul pelo menos tem patas azuis!

Plínio, O Velho, morreu durante a erupção do Monte Vesúvio em 79 d.C. e deixou para a posteridade a mandíbula mas não é certo que seja a dele. Rosa Bugairido suicidou-se mil novecentos e tal anos depois. O suposto crânio de Plínio, O Velho, repousa no Museu Histórico Nacional Dell'Arte Sanitaria de Roma com a seguinte etiqueta: "Crânio das escavações de Pompéia e atribuído a Plínio". Já o de Rosa Bugairido está desaparecido no fundo do mar. Dela apenas se viu um olho e parte dos miolos que ficaram colados aos percebes da maré baixa e se foram com a maré alta. Não há, pois, qualquer etiqueta dela.

Chamaram os isótopos e vêm agora dizer que o queixo do dito Plínio pertence a um escravo africano. Faz sentido, pois histórias dizem que Plínio pediu a um escravo que lhe acelerasse a sua morte no calor agonizante e, assim, provavelmente os seus ossos misturaram-se com os do escravo no fragor da desgraça. De modo que não temos um Plínio mas meio Plínio. Uma espécie híbrida com etiqueta plausível?

Homarus, que se diz fidalgo dos sete costados, o último dos últimos do Velho do Restelo, saltaria da mortalha se a sua etiqueta se confundisse com a de um caranguejo, bicho plebeu. Não que não fosse merecido, atendendo à carranca que tem. Mas os restos mortais de Homarus, conhecido por ser pistoleiro rancoroso, cheio de presunção e água benta e mau como as cobras, totó com as crustáceas de soalheiro - e isto espanta! -, salteador de rochedos, que são os quintais lá do sítio, exímio em rasteiras e pancada, misturados com os de um vulgar caranguejo até dava vontade de rir.

Homarus, o Lavagante de Patas Azuis.
Mas dizem: Ah, isso, esse, um ser desses não existe! Existe, sim senhor.

É o Lavagante de Patas Azuis! E, como podem ver, se Homarus não tem sangue azul pelo menos tem patas azuis!


(1. Sobre o crânio de Plínio, O Velho: «Here Lies the Skull of Pliny the Elder, Maybe» - The New York Times de 2020/02/14;

2. Um parente de Homarus: «Homarus gammarus» - Wikipedia;

3. Dicionário: a) "Ser um Velho do Restelo": ser conservador, resistente a mudanças; personagem de Luís Vaz de Camões na sua obra “Os Lusíadas” (Canto VI); b) "Mortalha": lençol ou túnica que envolve um cadáver; c) "Carranca", aqui, no texto: rosto sombrio, carregado; cara de mau humor; d) O provérbio "Presunção e água benta, cada qual toma a que quer": não há limites para a vaidade, para a soberba; e) "Totó", no sentido do texto: nabo; palerma; pateta; tanso; f) "Crustáceas de soalheiro", por analogia com "mulheres de soalheiro": mulheres coscuvilheiras;

4. «Rosa Bugairido» neste «blog»: alusão a Madeira de Buxo (Madera de Boj (1999)), de Camilo José Cela.)

Friday, February 07, 2020

Aqui há gato!

"Aqui há gato!": expressão popular que indica suspeitas ou dúvidas relativamente a alguma coisa. Sabemos que também pode ser um restaurante, uma livraria infantil e o nome de um livro, um café com literatura gatil, um bar, um filme de comédia.

Não é o caso mas faz de conta. Aqui o gato aguarda altivo, impassível, feito floreira para vergonha dos gatos, que o dono ou a dona abra a porta. E se abrir? Será que entra?

Porto, Rua de Álvaro de Castelões (entrada de casa)














E quando a personalidade de um homem se transfere para um gato chamado Senhor Patas Peludas?




(A propósito: a) «Significado / definição de gatos no Dicionário Priberam»; b) Sinopse do filme «Aqui Há Gato!» (comédia, 2016) - Cine-Cartaz do Público.)