Este texto faz parte de uma versão mais completa de “Nas folhas dos jornais que estavam a calafetar as portas da casa dos Castelares para que não entrassem as baratas estavam...”. O livro de estilo é o de Camilo José Cela. Aqui fica a segunda parte, sujeita a revisão quando se juntarem as partes.
II
Nas folhas dos jornais que estavam a calafetar as portas da casa dos Castelares para que não entrassem as baratas estavam, entre outros anúncios, pasta medicinal couto, há um século a cuidar da sua boca, petinga, Ala Arriba, sardinella longiceps (70%), óleo vegetal (29%), piri-piri e sal, e, como não podia deixar de ser, o desbaratizante matabarata, mata também ácaros, piolho da criança e pulga do gato, é um erro dar banho aos gatos, escreve na sua crónica semanal dona Caralhuda de Valadouro, Carmela Conacha Brava discorda, mais sobre estas senhoras nas pp. 10, 110 e 152 de A Cruz de Santo André, 1994, Camilo José Cela, 2003 Bibliotex Editor, para o Diário de Notícias, as baratas há quem as coma, também há quem coma a Caralhuda e a Conacha, mas isso são outras histórias, continuando, chineses, coreanos, e coreanos também são os portugueses que vendem em Porriño, vem n'A Cruz de Santo André, p. 130, edição já citada, e ainda tailandeses são grandes apreciadores de baratas, quando fritas é de comer e chorar por mais, uma barata bem preparada deve ficar estaladiça como o leitão da Bairrada.
Não hei-de morrer sem degustar uma barata com 320 milhões de anos, disse a Carmela Conacha Brava, mas caso aqui o primo da Caralhuda de Valadouro carregue no botão nuclear e nos mande a todos para os anjinhos pode bem acontecer que venhamos a ser pasto e repasto de uma, de modo que o melhor é esquecer o fóssil e berrar abaixo as baratas!, abaixo barata-americana, barata-alemã, barata-australiana, barata-oriental, barata-de-Madagáscar!, abaixo barata marrom fuligem ou negra ou barata verde e amarela, cor de bandeira!, baratas só mesmo com matabarata em cima do lombo, e o mesmo para as centopeias.
Baratas no Parlamento levam à suspensão da comissão de Trabalho, isto foi título de imprensa em 17 de Maio de 2018, já ninguém se lembra mas na altura deu muito que rir, a Carmela Conacha Brava acha que o amor devia ser explicado nas escolas através de circuitos electrónicos, com contadores e flip-flops.
Não foi a 17 mas sim a 13 de Maio de 1917, pastoreavam na serra d’Aire três pastorinhos quando relampejando lhes apareceu por cima de uma pequena azinheira uma rapariga com um metro e dez de altura, de uma beleza nunca vista e alva como uma nuvem, unia-se por um feixe de luz a uma nave que depois partiu vertiginosamente com a imagem dentro, sobre estes factos dona Caralhuda de Valadouro acha que se trata do comandante Dan Dare, vem no Falcão, formato grande, saíram 82 números, e que o holograma teve por finalidade fazer crer aos pastorinhos que a senhora que lhes falava era a senhora do Rosário, Carmela Conacha Brava fala da grande guerra e dos bolcheviques e que, por cá, o clero andava de candeias às avessas com as autoridades republicanas por causa da lei da separação, festejava-se um dia santo, dia muito importante para a fé, e que o bispo, tendo conhecimento dos factos do arbusto, disso se aproveitou mandando um prelado ao lugar, a fim de espiar e conspirar, coisa que não correu lá muito bem, foi preciso arregimentar alguns nobres descontentes para malhar nos maçons e derrubar o Afonso, ateu feroz, e umas tantas senhoras da alta sociedade dadas ao vinho, dona Caralhuda de Valadouro, que também sabe destas coisas, acrescenta que o cardeal, mais tarde em resposta a acusações de fraude, disse que os acontecimentos do arbusto foram impostos à igreja, o que talvez seja verdade atendendo à participação e ao empenho de um certo advogado, ferveroso católico e miguelista, grande proprietário, irmão e ministro de ordens e conferências religiosas, mais tarde sidonista, e interessado na manha, o facto é que Deus andava muito triste com a falta de fé dos portugueses, concordando, sim, com as teses do clericalismo neotomista e da teologia positivista, cuja ideia principal era que o milagre é uma interrupção momentânea das leis da natureza por vontade Dele, mas dona Caralhuda de Valadouro não arreda pé da sua teoria do Dan Dare e acha um disparate a ideia de unir os portugueses pelo arrependimento e a oração ou pôr no mesmo saco a aparição e o militante católico e beato Nuno de Santa Maria, o Nuno Álvares, o da batalha de Aljubarrota, coisa que, disse, mais não foi que esperteza saloia do presidente do conselho que se mancomunou com o cardeal, esta e outras coisas vinham descritas nas folhas dos jornais que estavam a calafetar as portas da casa dos Castelares para que não entrassem as baratas e uma, assaz curiosa, com data de 19, dava conta da revolta da batata, eram tempos de fome de cão, vem na Ilustração Portuguesa, n.º 589, de 4 de Junho de 1917, pp. 448-449.
As baratas declararam guerra à humanidade, incluindo gente de hábitos talares, invadindo casas, bibliotecas e conventos, as cozinhas, os armazéns, cantos e buracos esconsos, isto é coisa que vem de há muito tempo, certo é que as baratas são mal vistas, tanto é assim que duas baratas que subiam uma colina foram abatidas a tiro de fisga por dois frades, veio no Novidades e fez furor.
Doutras vezes, os Castelares: «Da importância e valor relativo das coisas. O azulejo.», 2024/08/27; «Uma bola vinda do nada», 2019/08/12.