I - “As feiticeiras fogem do cheiro a bitoque como o diabo foge da cruz”
Já vai há muito tempo. Não havia electricidade, só luz a petróleo, e as feiticeiras desciam das serras e vagavam à noite cantando o trá-lá-lá*, trá-lá-lé, / vamos rapar o pelo do boi do Zé, / ver se está bom de sangue, quentinho e apuradinho, / amanhã, trá-lá-lá, trá-lá-lé, / vai o couro do buzico**, / ai Deus, e u é?***, e dias depois o boi mirrava e embarcava, para desgosto do fazendeiro: “ai os meus bifes e tostões!” Para evitar a demanda, os mais calejados mosqueavam o pelo do boi com mostarda, prática que vinha de pais e avós, e nunca deve ser esquecida, que diziam, e bem, que as feiticeiras fogem do cheiro do bitoque à tuga**** como o diabo foge da cruz.
Fotografia do autor com filtro: o "palheiro do Anacleto" que agora é da "Cambada".
II - “Nunca um advogado deve ter uma cliente feiticeira”
Era uma vez uma feiticeira que nunca mais morria porque não conseguia entregar o mando. Uma dor d’alma vê-la definhar!, vai e não-vai, mas ninguém se abeirava do leito da quase-defunta com medo de tocá-la.
Chamaram o padre Feliscerto*****, doutorado nestas coisas. Quando a feiticeira disse “Pega!”, e podia ser para um adulto ou uma criança, o padre pegou numa vassoura pelo cabo e apontou-lha; se a tocasse, o mando, que é o seu dom e é invisível, passava para a vassoura e a feiticeira morria. Depois, sem a largar, o padre abrasava-a e fim de história.
Desta vez não correu bem ao padre Feliscerto. A velha era sabida. Não foi na treta do padre, pois tinha um plano. Pensaram: talvez com um advogado resulte. Ora na terra havia um, homem pequenino e impudente, conhecido por ser procurador de velhas carentes e endinheiradas e por outras trafulhices. Era procurador dela também. E chamaram-no. “Pega!”, disse a feiticeira. Movido pela soberba, o causídico pegou no testamento que sabia ser a seu favor.
E foi assim que a feiticeira passou o mando, arranjou um herdeiro e pôde morrer, e o agora advogado-feiticeira anda pela calada da noite a cantarolar o trá-lá-lá, trá-lá-lé, / vou rapar a barba ao Zé, / e depois rapar-lhe o dinheirinho, / ai Deus, e u é?...
(1. Dicionário: a) no título: palheiro: construção rústica para guardar animais, culturas da terra e também os utensílios agrícolas; e b) no texto: *O Super-Pateta em acção depois de comer os seus super-amendoins; **Criança pequena ou pouco desenvolvida; ***Forma arcaica de perguntar “Ai Deus, onde está?”; ****E por falar em «Bitoque à Tuga» «in» Tuga na Cozinha;
2. a) «Um menino daquele tempo», por Sílvia Mata, «in» Jornal da Madeira de 2024/05/05; e b) «Fradas, de Gil Vicente» «in» Teatro da Rainha, 2003/11/12;
*****Para além desta história (que não correu bem ao padre Feliscerto), outras do padre Feliscerto: a) «Uma primeira edição do mafarrico»; b) «Quando o mafarrico se disfarçou no relevo da porta do sacrário»; e c) «Quando o temerário padre Feliscerto enfrentou a depressão Nelson...».)
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