A minha bisavó Maria Pessegueiro (já uma vez se falou dela aqui (1)) usava o rebuço (2). Mas foi proibida de o usar por um regulamento policial (3). Dela dizia-se então, à boca cheia, que por ser muito “alevantada” se vestia assim, tapada da cabeça aos pés, para trair o marido sem ser reconhecida. E só aí, com a proibição, o meu bisavô soube que era corno, o último a saber, e, sofrendo com isso, lá nas entranhas, tal como um pai sofre por um filho, deu-lhe uma grandessíssima tareia para não mais esquecer (eram boas e merecidas e assim mandavam os tempos); depois, movido pela sua natural piedade, bondade e perdão, que é apanágio dos homens sérios, crentes e tementes a Deus, disse judiciosamente à "frágil pecadora": “que seja a primeira e a última...”, “que lhe sirva de lição e emenda.” (tratava-a na terceira pessoa, com respeito.)
Se a minha bisavó Maria Pessegueiro ficou sem o rebuço, com a idade ganhou o buço (4).
Vem isto a propósito do que se diz hoje por aí (5), de que por trás da burka se podem esconder revólveres e pistolas, armas antigas de pederneira, bacamartes, escopetes de zagalote e espingardas de caça, facas e facalhões, punhais, limas, formões, gadanhas, machadas e armadilhas e sabe-se lá que mais... mas não traições. Há que fazer uma lei!
Agora são outros tempos, outra a argumentação, e outras as infidelidades...
(1. (5) «Quand les femmes portugaises se voilaient: coca, bioco et capelo» – Portugal.fr, 2025/10/20;
(“Nas ruas de Lisboa, Faro ou Angra do Heroísmo, as figuras femininas veladas desapareceram. No entanto, muito antes dos debates contemporâneos em torno do niqab ou da burca, Portugal já possuía suas próprias formas de véu que cobriam o rosto inteiro. Chamados de coca, bioco ou capelo, essas vestimentas de cobertura eram usadas pelas mulheres portuguesas entre o séc. XVII e os meados do séc. XX, muitas vezes por razões de respeitabilidade, anonimato ou propriedade social.
Como o Parlamento português acaba de votar a proibição do véu integral em espaços públicos, este olhar sobre um aspecto pouco conhecido da História do vestuário nacional convida-nos a reflectir sobre os complexos vínculos entre religião, cultura, tradição e controlo dos corpos. Uma exploração da memória e da modernidade, nas fronteiras entre o têxtil e a política.”)
(5) Entrevista a Djelma Fati, jornalista, que usa o hijab: «Proibição da burca em espaços públicos é "discriminação" e pode refletir-se "na vida dos muçulmanos" em Portugal» (COM O VÍDEO) – SIC Notícias de 2025/10/17;
(“Para Djelma, o hijab "não representa nenhuma opressão e subjugação da mulher muçulmana". É, sim, um "comportamento ou uma forma das mulheres muçulmanas mostrarem modéstia e a castidade".” “"É isso que representa o hijab, embora cada um agora interprete da sua forma. O uso de hijab não tem nenhuma outra discriminação", explica.”)
(3) «A burqa também existiu no Algarve: era o bioco e dava liberdade à mulher» – Público de 2015/06/14;
(“O antigo governador civil de Faro, Júlio Lourenço Pinto, nascido no Porto, viu nesta peça de vestuário “vestígios da dominação muçulmana” que entendia não terem razão de existir no final do século XIX. Vai daí, extinguiu o bioco. No seu livro de crónicas O Algarve, publicado em 1894, justifica: Trata-se de uma “máscara” que poderia dar azo a certas libertinagens. Uma das razões invocadas prende-se com a fidelidade conjugal. Imagine-se uma “frágil pecadora” que, vestida de forma a não ser reconhecida, poderia atirar-se “sem perigo a aventura amorosa-romanesca ou a façanha de infidelidade conjugal”, afirma. Por isso, servindo-se dos poderes que lhe estavam conferidos, decretou: “É proibido nas ruas e templos de todas as povoações deste distrito o uso dos chamados rebuços ou biocos de que as mulheres se servem escondendo o rosto”, refere o artigo 32, do Regulamento Policial do distrito, publicado a 6 de Setembro de 1892.”)
(3) «Coca, Bioco e Capelo: no tempo em que as portuguesas usavam Burka» (Havia ainda a coca (no Alto Alentejo) e o Capelo (nos Açores)) – Descobrir Portugal, 2018/01/30;
2. (2) «Rebuço» (Embuço, Bioco, ou Biúco, no Algarve, era uma “espécie de capote comprido com um cabeção, geralmente de cor negra, que cobria quase totalmente o corpo, desde a cabeça aos pés. A única abertura era uma estreita rótula em bico para os olhos, que podia ser rodada com as mãos, de forma a mudar o sentido da visão.") – Wikipedia;
(4) “Buço”: Penugem no lábio superior da mulher; às vezes mais do que penugem, quase bigode de causar inveja!;
3. (1) «A Minha Bisavó Maria Pessegueiro (pelo lado da Minha Mãe)» (no «blog);
(1) «A Minha Bisavó Maria Pessegueiro Pelo Lado da Minha Mãe» (no YouTube);
4. Outros termos:
“Hijab”: lenços que cobrem o cabelo e pescoço;
“Chador”: normalmente negro, é tipo uma capa larga que cobre todo o corpo;
“Nikab”: cobre toda a cara, à excepção dos olhos;
“Burka”: cobre desde a cabeça até aos pés;
5. Desenho a esferográfica do autor (1973/10/17), agora legendado, foi publicado com o nome «A senhora Maria».)

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